Para
a festa da vida usemos nossa melhor fantasia..., a música é breve.
Naquele dia eu estava especialmente
mal. Na cabeça, trabalho de última hora – bem-vindo, diga-se de passagem,
depois de seis meses desempregado –, um casamento vazio que há muito já havia
terminado, mas que persistia devido à tolice dos envolvidos de teimarem em
jogar um quebra de braço nefasto, só para ver quem desistia primeiro, como se
houvesse ainda porquês de luta.
Eu saí do hotel, atrasado, cabeça
ocupada, pés apressados e mãos atrapalhadas. Chamei um táxi, e quando abri a
porta, eis que ela entra despreocupadamente, como se eu o tivesse chamado e
aberto a porta para ela. Enquanto dava ordens ao motorista, me agradecia com um
sorriso zombeteiro. Quando me dei conta, eu estava como um tolo, parado no
meio-fio da calçada, com ar abobalhado e expressão de quem viu um objeto ser
abduzido. Lembro-me de ter acompanhado com o olhar o táxi desaparecer no
infinito e conseguir expressar simplesmente: Filha da p... É, foi marcante
assim.
Indignado,
narrei a história para o taxista seguinte, que somente sorria pelo retrovisor,
o que me deixou mais irritado. Eu questionava ao meu interlocutor: Quem ela
pensa que é? Pior, quem ela pensa que eu sou? O porteiro do hotel? O organizador
de filas? Ao olhar para o motorista, percebi que ele estava se segurando para
não gargalhar, então decidi terminar a conversa com uma expressão de vencedor:
Velha idiota!
Meu destino era o Residencial
Itagiba. O local abrigava idosos que, de acordo com a nossa sociedade não têm
função social. Esses, do Itagiba, com suas míseras aposentadorias, podiam pagar
suas despesas cotidianas. Não quero sequer imaginar a situação daqueles que nem
isso conseguem manter. Bem, mas minha tarefa era entrevistá-los, para depois,
resumidamente, apresentar um texto para seus obituários. Mórbido, não? É, mas
assim é a vida. Incrível como as pessoas se interessam mais pela vida do outro,
depois que o outro está morto. Quando o sujeito está vivo é foco de críticas, comentários
maldosos e escanteado; mas do defunto todos querem falar bem, serem próximos,
até conhecidos. Tem gente que lembra seus entes “queridos” unicamente quando
recebe a notícia do falecimento. Muitos parentes só se encontram em enterros.
Alguns retomam os vínculos, porém, a grande maioria, se encontrará de novo
somente em outra despedida.
A intenção da diretoria do Itagiba
era registrar detalhes da vida daqueles que ali passavam, cujos, e muitos, sequer
seriam enterrados pela família. O objetivo era dar dignidade a esses
abandonados em vida, mostrar algum interesse por suas histórias passadas. Saber
como e por que chegaram ali, se têm ou não relação familiar.
O
relato dessas experiências por si só já era benéfico para eles que de alguma
maneira voltavam a se sentir integrantes e integrados a alguma coisa. Por mais
que as histórias reportassem ao passado, eles deixavam, por míseros momentos, a
alcunha de esquecidos.
Eu
tinha horários estritos, por que, conforme o administrador, na instituição tudo
precisava ser cronometrado, visto que, assim como as crianças, os velhos
precisam de limites, caso contrário, transformam seu espaço em caos. Nunca
comprovei isso, até porque assim como eles, seguia as normas.
Quando
iniciei o trabalho, tinha a logística toda em minha mente, anotada em um bloco
de rascunho. Quantos encontros eu teria por dia, quais as perguntas chaves, o
número de caracteres de cada texto, etc. Depois da primeira entrevista, rasguei
meu esquema e percebi que a única regra a cumprir era ser um bom ouvinte e, com
sorte saberia, por força da profissão, transcrever vidas.
O
primeiro com quem conversei foi Virgílio. O próprio nome já nos remete a um
senhor, parece que quem leva esse nome já nasceu com idade avançada. Não
imagino alguém escolhendo para seu bebê o nome de Virgílio. É um nome bonito,
forte, mas tem idade... Bem, mas fora minhas divagações, Virgílio tinha 87 anos
de idade. Estava há dois anos na instituição. Era lúcido, hipocondríaco e amargurado.
O principal, quem sabe o único motivo pelo qual estava lá, era porque havia
perdido seu melhor amigo. Disse que no mesmo dia do enterro foi direto para o
Residencial.
Esta
é a sua história.
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Engasgado
Eu
e o Juvenal nos conhecemos quando estávamos em serviço militar. Eu sempre fui
acabrunhado, arredio, de poucas palavras e nenhum riso. Ele não. Era um negro
pachola, chacoalhava todo o corpo quando começava a rir. Nunca soube de onde
ele tirava tanta risada, menos ainda dos motivos que o levavam a expressar
aquele contentamento. Éramos os dois pobres, mal e parcamente sabíamos assinar
nossos nomes, não tínhamos nenhuma expectativa para depois de sairmos do
quartel. Então, de que merda aquele ria tanto?
Continua...