domingo, 29 de maio de 2016

Engasgados

Para a festa da vida usemos nossa melhor fantasia..., a música é breve.

            Naquele dia eu estava especialmente mal. Na cabeça, trabalho de última hora – bem-vindo, diga-se de passagem, depois de seis meses desempregado –, um casamento vazio que há muito já havia terminado, mas que persistia devido à tolice dos envolvidos de teimarem em jogar um quebra de braço nefasto, só para ver quem desistia primeiro, como se houvesse ainda porquês de luta.
            Eu saí do hotel, atrasado, cabeça ocupada, pés apressados e mãos atrapalhadas. Chamei um táxi, e quando abri a porta, eis que ela entra despreocupadamente, como se eu o tivesse chamado e aberto a porta para ela. Enquanto dava ordens ao motorista, me agradecia com um sorriso zombeteiro. Quando me dei conta, eu estava como um tolo, parado no meio-fio da calçada, com ar abobalhado e expressão de quem viu um objeto ser abduzido. Lembro-me de ter acompanhado com o olhar o táxi desaparecer no infinito e conseguir expressar simplesmente: Filha da p... É, foi marcante assim.
               Indignado, narrei a história para o taxista seguinte, que somente sorria pelo retrovisor, o que me deixou mais irritado. Eu questionava ao meu interlocutor: Quem ela pensa que é? Pior, quem ela pensa que eu sou? O porteiro do hotel? O organizador de filas? Ao olhar para o motorista, percebi que ele estava se segurando para não gargalhar, então decidi terminar a conversa com uma expressão de vencedor: Velha idiota!
            Meu destino era o Residencial Itagiba. O local abrigava idosos que, de acordo com a nossa sociedade não têm função social. Esses, do Itagiba, com suas míseras aposentadorias, podiam pagar suas despesas cotidianas. Não quero sequer imaginar a situação daqueles que nem isso conseguem manter. Bem, mas minha tarefa era entrevistá-los, para depois, resumidamente, apresentar um texto para seus obituários. Mórbido, não? É, mas assim é a vida. Incrível como as pessoas se interessam mais pela vida do outro, depois que o outro está morto. Quando o sujeito está vivo é foco de críticas, comentários maldosos e escanteado; mas do defunto todos querem falar bem, serem próximos, até conhecidos. Tem gente que lembra seus entes “queridos” unicamente quando recebe a notícia do falecimento. Muitos parentes só se encontram em enterros. Alguns retomam os vínculos, porém, a grande maioria, se encontrará de novo somente em outra despedida.
            A intenção da diretoria do Itagiba era registrar detalhes da vida daqueles que ali passavam, cujos, e muitos, sequer seriam enterrados pela família. O objetivo era dar dignidade a esses abandonados em vida, mostrar algum interesse por suas histórias passadas. Saber como e por que chegaram ali, se têm ou não relação familiar.
O relato dessas experiências por si só já era benéfico para eles que de alguma maneira voltavam a se sentir integrantes e integrados a alguma coisa. Por mais que as histórias reportassem ao passado, eles deixavam, por míseros momentos, a alcunha de esquecidos.
Eu tinha horários estritos, por que, conforme o administrador, na instituição tudo precisava ser cronometrado, visto que, assim como as crianças, os velhos precisam de limites, caso contrário, transformam seu espaço em caos. Nunca comprovei isso, até porque assim como eles, seguia as normas.
Quando iniciei o trabalho, tinha a logística toda em minha mente, anotada em um bloco de rascunho. Quantos encontros eu teria por dia, quais as perguntas chaves, o número de caracteres de cada texto, etc. Depois da primeira entrevista, rasguei meu esquema e percebi que a única regra a cumprir era ser um bom ouvinte e, com sorte saberia, por força da profissão, transcrever vidas.
O primeiro com quem conversei foi Virgílio. O próprio nome já nos remete a um senhor, parece que quem leva esse nome já nasceu com idade avançada. Não imagino alguém escolhendo para seu bebê o nome de Virgílio. É um nome bonito, forte, mas tem idade... Bem, mas fora minhas divagações, Virgílio tinha 87 anos de idade. Estava há dois anos na instituição. Era lúcido, hipocondríaco e amargurado. O principal, quem sabe o único motivo pelo qual estava lá, era porque havia perdido seu melhor amigo. Disse que no mesmo dia do enterro foi direto para o Residencial.
Esta é a sua história.
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Engasgado

Eu e o Juvenal nos conhecemos quando estávamos em serviço militar. Eu sempre fui acabrunhado, arredio, de poucas palavras e nenhum riso. Ele não. Era um negro pachola, chacoalhava todo o corpo quando começava a rir. Nunca soube de onde ele tirava tanta risada, menos ainda dos motivos que o levavam a expressar aquele contentamento. Éramos os dois pobres, mal e parcamente sabíamos assinar nossos nomes, não tínhamos nenhuma expectativa para depois de sairmos do quartel. Então, de que merda aquele ria tanto?
Continua...

Está me vendo?

Está me vendo?
A cada 40 segundos uma pessoa se mata no mundo…

Pouco falado, o suicídio na infância e adolescência tem crescido nos últimos anos.
Dados do Mapa da Violência, do Ministério da Saúde, revelam que de 2002 a 2012 houve um crescimento de 40% da taxa de suicídio entre crianças e pré-adolescentes com idade entre 10 e 14 anos. Na faixa etária de 15 a 19 anos, o aumento foi de 33,5%.
O Brasil é o quarto país latino-americano com o maior crescimento no número de suicídios e o oitavo do mundo em números absolutos de pessoas que tiram a própria vida (Dados divulgados pela Organização Mundial da Saúde - OMS).
Nos últimos anos, as taxas de tentativa de suicídio e suicídio consumado em jovens têm aumentado. O problema, muitas vezes, é omitido pelas famílias, pois, além da dor, vem carregado de culpa, vergonha e preconceito.
A formação da ideia de suicídio é comum na idade escolar e na adolescência; as tentativas dessa prática e a consumação da mesma aumentam com a idade, tornando-se comuns durante a adolescência.
Fatores desencadeantes: discussão com os pais, problemas escolares, perda de entes queridos e mudanças significativas na família.
O jovem entra no mundo através de profundas alterações no seu corpo, deixando para trás a infância; é lançado ao desconhecido, novas relações com os pais, com o grupo de iguais e com o mundo. Assim, é invadido por forte angústia, confusão e sentimentos de que ninguém o entende, que está só e que é incapaz de decidir corretamente seu futuro. Isso ocorre, principalmente, se o jovem estiver num grupo familiar também em crise, por separação dos pais, violência doméstica, alcoolismo ou doença mental de um dos pais, doença física ou morte...

- O que você está lendo?
- Espera, já falo com você.

O jovem que considera o suicídio a solução para seus problemas deve ser observado de perto, principalmente se estiver se sentindo só e desesperado, sofrendo a pressão de estressores ambientais, insinuando que é um fardo para os demais. Pode chegar a pensar que a sua morte é um alívio para todos...

- Então?
- Estou lendo uma pesquisa sobre suicídio na adolescência.
- Por?
- Por quê? Você não soube? Um colega da Vick se matou!
- Deus do céu. Quantos anos?
- Quatorze.
- Quatorze? O que passa na cabeça de uma criança de quatorze anos para cometer suicídio?
- É sobre isso que estou lendo... Vou fazer uma matéria.
- Matéria? Há. Ninguém publica matéria sobre suicidas...
- Por isso mesmo. Certos assuntos precisam deixar de ser proibidos e vir à tona, só assim poderemos discutir abertamente sobre a melhor maneira de tentar impedir que isso continue... E pelo que tenho lido, os números vêm aumentando assustadoramente.
- Como ela está?
- Quem?
- A Vick!
- Ah, imagina. Triste, abatida.
- Era um amigo chegado?
- O que isso importa? Era um colega, um conhecido, um vizinho, o cara ao lado... Uma criança de 14 anos se mata. Isso não te choca?
- Claro que sim, mas estava tentando dizer que seria bom se não fosse amigo tão próximo... só isso.
- Preciso falar com a família.
- Eles devem estar arrasados.
- É, a morte nunca é bem-vinda, ainda mais para uma criança, e desse jeito... tirando a própria vida.
- Não sei se seria um bom momento para falar com eles...
- Nunca vai ser um bom momento para falar sobre a perda de um filho.
- Estou tentando dizer que... dê um tempo. Só isso.
- Parece que o garoto era homossexual.
- Deus do céu... mais um motivo para você dar um tempo...
- Mais um tabu.
- E dos grandes.

II

- Olá Enrique.
- Está me vendo?
- Sim. Agora, sim. Como está?
- Você vai mesmo me ajudar?
- Claro. Claro que sim, é para isso que estou aqui. Podemos começar?
- Sim. Não.
- Sim ou não?
- Sim... Mas, antes quero saber uma coisa.
- Claro. Pode perguntar.
- Vai doer?
- Depende.
- De quê?
- De você.

III

- Então?
- Não quiseram falar comigo.
- Imaginei.
- Saco. Como as pessoas pretendem resolver questões sem conversar sobre elas?
- Quem sabe não queiram.
- Quem não vai querer saber sobre o porquê seu filho se matou?
- Quem não quer saber. Às vezes, simplesmente aceitar o que aconteceu, doa menos.
- Ah! Gente idiota.
- Eles?
- O que você quer dizer com isso? Que a idiota sou eu? Eu que quis consolá-los, mostrar sentimento pelo que ocorreu, saber como ajudar?
- Não estou dizendo que você é idiota, mas eles com certeza não são. Falando sério, você está sim fazendo o papel de idiota, achando-se a bondade em figura humana.
- Prepotente. Você está dizendo que sou prepotente?
- Não. Você está sendo prepotente, você não é.
- Como lidar com isso então, se as pessoas não falam comigo?
- Não é um assunto fácil de falar, de lidar, de viver.
- E nunca será se continuar no obscurantismo.
- Você está nervosa. Você sempre usa palavras difíceis quando está nervosa.
- Vê. Você me conhece. Você sabe o que se passa comigo. Se eu tentasse ou pensasse em me matar, você perceberia, tentaria me impedir...
- Não tentaria não... Melhor, tentaria sim. É isso que estou fazendo... Você poderia se afundar profissionalmente. Essa matéria que você queria fazer poderia te levar ao estresse, à frustação, e de novo à depressão...
- Queria não.
- O quê?
- Quero. O tempo do verbo está errado. Eu quero e vou fazer essa matéria.
- Ah, como você é difícil... Filha da puta, nem me escutou.
...
- Mãe, não!
- Vick, qual é o problema? Só quero saber mais sobre ele. Quem eram seus melhores amigos? Do que gostava...
- Mãe. Não!
- Que merda, Vick. Abre essa porta, garota...Que droga.



Continua...

quarta-feira, 21 de outubro de 2015



Matar não matou,
Mas doeu.
Sangrou.
Fiquei de cama.
Quase morri,
Mas, não.
Perdi tudo da cara.
De vergonha, a sorriso e dentes.
De olhos a sonhos.
Tudo acabou.
Mas sou Fenix, amor.
A única coisa que não trago comigo é compaixão,
Perdão.
Tu vais sofrer pra mim.
Ah, também vais te perder, amor.
E eu, mesmo morta, estarei solta por aí.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Mentira

Vou ficar bem... 
Novas palavras já não têm mais importância.
Vai, eu farei de mim o que eu quiser.
Eu sou filha de Iansã. Não preciso de piedade.
O pê da minha vida tem sempre um quê de poesia.
E falando sério amigo, tu eras do amor que eu queria só um arremedo,
não vou nem sentir saudade.

sábado, 17 de outubro de 2015

Coração analfabeto

Tem um louco solto no meu peito.
Está convulsionando de ódio.
Espumando de raiva.
Quer sair pela boca.
Dizer e fazer tragédias.
Incapaz.
Bem-feito!
Quando eu disse não vai, ele me abanou todo contente: Eu vou ser feliz.
Feliz até chegar o verbo trair e te ensinar a conjugar.
Idiota. Aprendeu?
Traição
Tenho vontade de caminhar caminhar caminhar...
Caminhar até gastar os pés,
As pernas,
O sexo,
Chegar aos órgãos.
Ir esfregando eles no asfalto.
Sem olhar para trás.
O sangue que escorra.
A dor que se aguente.
A intenção é chegar o mais próximo do coração possível.
Imaginem a reação dele...
Ao assistir tudo e saber que sua hora está chegando.
Também vai ser linchado, escalpelado, destruído.
Ele deve pensar, apavorado, para onde fugir?
Covardes sempre pensam em rotas de fuga.
O coração sabe que para baixo só há destruição, e para cima...
Quem manda agora é o cérebro.
Que batalha. Que êxtase. Que vontade.
E pensar que guerra essa só por causa de uma traição.

Que morram todos. Que morra eu.
Costurando a história

No tempo da minha mãe, hoje com 70 anos de idade, as mulheres eram donas de casa. Trabalho não remunerado, que exigia total comprometimento, manhãs, tardes e noites, além da capacidade de saber cozinhar, lavar, passar, cuidar dos filhos e, em muitos casos, e foi o da minha mãe, aguentar “as escapadas” e as agressões verbais e físicas do marido. Ah, e ainda, precisavam complementar a renda familiar, porque naquela época também se trabalhava muito e ganhava-se pouco. Minha mãe tinha por ofício a costura. Ofício esse que vinha de sua tataravó, que havia passado para sua avó, para suas filhas..., ou seja, uma herança feminina de família. Pois foi esse ofício que garantiu à minha mãe dar o seu grito de basta. Lembro ter sido, por aquela mesma época, que as mulheres deixaram de chorar em cima da louça e partiram para o mercado de trabalho – pelo menos onde eu vivia foi nessa época que ocorreu. Os passos ainda vacilantes, mas muito determinados, garantiram às mulheres o mercado que têm hoje, apesar de ainda ser muito discriminatório e injusto financeiramente para o gênero. Bem, mas é o que se tem por agora...
A separação de meus pais foi difícil, toda separação machuca, e machuca a todos.
Mas foi o ofício de costureira, mesmo para uma mulher que nunca havia trabalhado fora, “mal vista” devido à separação (sim, naqueles tempos, a mulher separada era rebaixada de casta), que garantiu a comida na mesa e um teto para mim e meu irmão. Além “dessas coisas básicas” também nos permitiu continuarmos nos estudos, situação que minha mãe não abria mão. “Vocês precisam estudar. Tu mais ainda, por ser mulher. Mulher não pode depender de homem”.
E assim eu fui... Insistindo. Faculdade. Emprego. Casamento. Filhos. Desemprego. Traição.
Como, diabos, eu me separo de um marido traidor, no meio desse desemprego generalizado, garantindo uma vida digna para meus filhos, sem saber absolutamente nada de costura?
Não que minha mãe não tenha tentado me ensinar. Ora se tentou. “Se não precisar, ótimo. Mas se precisar e souber, aproveita”. Sábias palavras. Por que eu não as ouvi também?

Bem, mas agora é enxugar as lágrimas, engolir a raiva e sair pra comprar agulha e linha, nem que seja para costurar o trapo que estou.